Por volta de 1990 – década em que as rádios evangélicas estouraram nas grandes cidades – os artistas com seus contratos ‘casados’ (as rádios tocavam seus próprios artistas e faziam um auto-jabá) conseguiam promover seus trabalhos em eventos promovidos pelas estações gospel e davam opção aqueles que deixaram a “música do mundo” para se envolverem e se perceberem nas composições cristãs. Dali em diante, juntamente com o advento do Compact Disc (CD), a música cristã se tornaria um segmento comercial potencialmente lucrativo. As percepções do público levaram-no não apenas (em uma época onde MP3 não existia) a se tornar fã da música produzida ainda de maneira tímida dentro dos estúdios, mas também consumidor de cds, camisas, indo à shows, fazendo fã-clubes e criando uma semelhança com o que se via na música fora do território evangélico.
Se fazer música evangélica se tornou um negócio rentável, o combo veio quebrar alguns paradigmas. O rock gospel chegou com força às rádios e numa espécie de libertação, explodiu em todo lugar. Oficina G3, Resgate, Katsbarnéa,Novo Som, Catedral, eram exemplos de bandas que sairiam do preconceito que o estilo sempre sofreu. Não obstante a revelação de que no Brasil se fazia rock com sotaque gospel, as portas se abriram também para bandas estrangeiras que faziam o mesmo estilo. Bride, Tourniquet, Whitecross vieram ao Brasil em diversas ocasiões, levaram multidões aos seus shows; parecia se consolidar dentro do mercado gospel o segmento roqueiro, uma evolução que teria desdobramentos visíveis nos dias de hoje e que arrefeceram as brigas internas (aqueles que sempre condenaram o rock como estilo dentro da igreja) e a maneira como a sociedade passou a olhar para música evangélica. Os arranjos pobres e tolidos dos primeiros discos evangélicos deram lugar às mesas de 24 canais, com tecnologia digital, concepções artísticas menos aprisionadas a formatos. Um cenário diversificado invadiria as rádios : não só o rock, mas o reggae, o hip-hop, a música romântica (com seu discurso disfarçado de louvor), tudo agora estava no caldeirão gospel. Olhos “serrados”*, bíblias na mão. Ninguém poderia segurar o pungente mercado musical evangélico.
A banda carioca Catedral conseguiu se destacar das demais bandas de rock justamente em um Estado (Rio de Janeiro) onde a música pop era a que possuía mais força. São Paulo já tinha seus representantes e através da Igreja Renascer em Cristo (sim, a denominação foi responsável por disseminar muitas bandas evangélicas na década de 90) foi possível assistir os eventos evangelísticos promovidos pela igreja na TV. A banda formada por Kim (vocais), Júlio (baixo), Cezar (guitarra) e Guilherme (bateria) já era bastante conhecida no meio evangélico mas ampliou seu espectro quando assinou contrato com a MK Publicitá, também detentora dos direitos de radiofusão da El Shaday, famosa estação de evangélica na cidade do Rio de Janeiro. Esse casamento radio + gravadora colocou a família Mota (Kim, Júlio e Cezar são irmãos) no topo da parada gospel. Ao mesmo tempo Kim teve oportunidade de alavancar sua carreira solo com o disco “Coração Aberto” (1996), que tocou em proporções micheltelonianas. No Rio de Janeiro, e agora em alguns lugares do Brasil, era difícil não conhecer o Catedral. Ainda mais que a banda cresceu paralelamente sob o estigma de ser a versão gospel da Legião Urbana. As semelhanças estéticas musicais, principalmente entre os primeiros trabalhos da Legião com as músicas mais famosas do Catedral fariam um link que traria bônus e ônus para banda evangélica.
Até que um dia…
A banda decidiu se libertar do rótulo que lhes impuseram: o de estar apenas associado à música gospel. Direito criativo e artístico dos músicos. Somente por esta decisão, acompanhados do desvínculo da MK, foram achincalhados como traidores do movimento. Algo que aconteceu – em outras proporções com o João Gordo (vocalista da banda punk Ratos do Porão) ao se tornar VJ na MTV. Tratados por autoridades eclesiásticas, ministérios evangélicos e membros tradicionais como Judas Iscariotes por terem se vendido às moedas de prata da gravadora Warner (onde ficariam por 3 anos), o Catedral seguiu um rumo de muito sucesso fora dos arraias da igreja. Mantendo o discurso musical valorizando temas como o amor e a esperança, a banda ganhou espaço nos canais seculares como MTV e Multishow e passou a ser ‘arroz de festa’ na programação de TV, algo inimaginável para qualquer grupo evangélico. Isso aconteceu muito tempo antes de Aline Barros participar do programa da Xuxa e render-lhe louvor ou mesmo antes de Régis Danese invadir os programas de vários canais abertos para cantar sobre Zaqueu.
O Catedral era a opção para as viúvas da Legião Urbana (banda desfeita em 1996 com a morte de Renato Russo) e embora nunca tenham criado caso com a banda de Dado Villa-Lobos, também não rechaçaram a chance de se tornarem populares, nem que fosse sob o estigma de cópia da banda “de Brasília” (onde surgiu). Traidores do movimento evangélico, descendentes de uma banda cujo o vocalista era homossexual assumido. O que mais poderia macular a banda Catedral?
Em 2001, a banda deu entrevista ao jornalista Ricardo Pieralini. Ele vinha em nome do “Usina do Som”, um dos mais respeitados e frequentados sites musicais. Tal “conversa” iria desencadear numa série de desentendimentos, processos judiciais, distratos comerciais, recolhimento de discos e etc. Clique
aqui para ver uma “cópia” do que foi veiculado pelo site.
A banda na mesma semana que a entrevista foi ao ar desmentiu a forma como as palavras foram ditas mas já era tarde demais. A repercussão fora estrondosa. A MK, antiga gravadora, mandou uma espécie de “memorando” para os maiores órgãos da imprensa evangélica. Produtores, contratantes, gravadoras, ministros, pastores, todos receberam a entrevista cujo o título dizia:
“A IGREJA É UMA MERDA”.
Segundo relato da banda (que você pode ver abaixo mediante outros esclarecimentos), isso trouxe prejuízos comerciais e pessoais aos seus integrantes. Não bastasse o fato de serem taxados como traidores do movimento gospel (onde adquiriram reconhecimento e dinheiro) agora também foram cunhados de “inimigos da Igreja”. Se você quiser saber mais sobre tudo que ocorreu na época veja o vídeo na íntegra. Ele é parcial (porque conta uma versão – a da banda – sobre os fatos), mas vale pelo registro emocionado e pela marca histórica dos fatos que aconteceram nos últimos anos.
Passado algum tempo…
O jornalista Ricardo Alexandre
O editor-chefe do antigo Usina do Som (que fechou por motivos alheios a estrutura deste artigo), o jornalista cristão Ricardo Alexandre, resolve fazer um livro de memórias e conta que na verdade, muito do que foi escrito na malfadada entrevista foi parte de uma ‘técnica’ para chamar a atenção do público secular para banda Catedral e que na verdade a própria banda explica a “frase sem contexto” (“a igreja é uma merda) na própria entrevista. Veja
aqui a confissão do jornalista.
Eu aqui encerro o resumo (sim, tantas coisas aconteceram) dos fatos que após 13 anos culminaram em um mea culpa do jornalista (que ainda reservou um espaço para dizer que fez coisa pior com o Cidade Negra), não para defender a banda Catedral (eles sabem usar meios mais legítimos do que contar com o PipocaTV como veículo) ou para espinafrar o Ricardo Alexandre após expor a verdade tantos anos depois mas chamar a atenção para o público sobre jornalismo na internet e mercado gospel.
O maior interesse do PipocaTV é que você clique nos links e leia TODAS as matérias possíveis. Por isso trabalhamos com temas chamativos, que encontrem os nossos alvos de leitura. Não temos nenhuma pretensão de carregarmos “verdades” ou “mentiras” e nem defender pontos de vistas. Estamos informando e “chamando sua atenção” para as novidades do meio cultural, sobre os assuntos da TV, do cinema. Muitas vezes nossas abordagem é mais espetacular do que o objeto da matéria. Isso é um recurso quase “psicológico” para fazer com que você clique, fique um tempo ali e tenha a curiosidade de ler outras matérias, vídeos, artigos, reviews. Não somos formadores de opinião, não influenciamos (ainda) os nossos leitores sobre valores pessoais dos artistas envolvidos. Apontamos para arte como nosso objeto de discussão.
O jornalismo de internet é quase sempre ESPECULATIVO. Não são poucas as pessoas que vão a público dizer que foi “mal interpretado”, que “não foi bem isso que eu quis dizer”, por um motivo muito simples: o nosso país que não sabe ler, também não sabe falar. Quem não sabe falar acaba virando muitas vezes ingrediente fácil na mão daqueles que “informam” à sociedade os assuntos mais variados. Ler não é apenas se aplicar às interpretações do que foi escrito mas principalmente do que ficou na lacuna, no vazio. A interpretação de um texto observado todos os fatos ocorridos contextualmente (época, pessoas, notícias, outras entrevistas) só pode ser “concluída” mediante a harmonia de uma história. Ou seja, se espante se você ler algo sobre alguém que a vida toda que disse ser Palmeirense aparecer com a camisa do Corinthians. O texto pode aparentar incoerências, a vida do entrevistado também, mas isso é coisa rara. Não há interesse nos sites em serem baluarte de valores como “verdade”, “sinceridade”, “cumplicidade com o leitor” e etc. Ele quer apenas que você leia e tire suas conclusões, mesmo que algumas vezes, ele tire as conclusões por você. Não sejamos ingênuos.
Com relação ao mercado gospel não há dúvidas que a banda Catedral foi importante no processo de “desmistificação” do poder cultural da religiosidade. E foi tão forte neste processo, que chamou atenção para religião evangélica sendo avacalhado por seus principais representantes. O discurso deles nunca foi místico (“se você comprar o nosso cd você estará abençoando muitas vidas”), poucas vezes se viu a banda tocando em igrejas (talvez no início de carreira) e mesmo assim, sua “saída” (com todas as aspas) fez com que hoje a música gospel seja aceita nos mais diversos segmentos do mercado fonográfico. Se hoje existe um Festival Promessas, é porque alguém escancarou o portão lá atrás dizendo que o que valia era a qualidade da música e não a fé de quem a cantava. Infelizmente a retórica do meio gospel ainda é vinculada a uma espiritualidade incipiente para vender disco. Como se a qualidade do “que Deus fez em CD” fosse inquestionável. Por trás das canções existe gente, e por trás de cada uma delas, intenções e até onde eu saiba, discos são VENDIDOS e não DOADOS, portanto, muito mais do que “abençoar”, existem interesses comerciais totalmente relevantes, por trás de cada verso, de cada capa, de cada arranjo manjado. Se você músico gospel quer abençoar e não lucrar (conforme o Catedral nunca se negou), passe a doar metade do que você lucra em todos os acordos comerciais. Hoje em dia, até promoções e sorteios invadiram o mercado fonográfico gospel. Deus anda bastante moderninho.
A crítica não é contra a sociedade gospel mas para todo aqueles que se enganam por total falta de inteligência em analisar os fatos como eles são e não como são ditos. O Catedral não é ingênuo, o Ricardo Alexandre não é o Lobo-Mau. Ambos são parte desta máquina que não para de rodar e que busca vorazmente criar suas próprias “verdades”, produzindo personagens que conquistam e cativam milhões ao redor do mundo. Sorte do Catedral que o jornalista, se não se retratou, disse porque fez, embora a desculpa tenha sido esfarrapada. A verdade não pode ser uma questão de vaidade (como a banda ao pedir que seus detratores peçam perdão) e sim um valor individual de vida, que serve como bússola para diversas viagens nela contida.
Duvidar é bom, mesmo que seja escrito por nós do PipocaTV. Porque a razão é uma expressão a ser discutida abertamente e não pulverizada pelo tempo. O Catedral que o diga.
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Twitter do Kim após saber da matéria. |