segunda-feira, 18 de março de 2024

Qual é a real ameaça da Inteligência Artificial nas eleições?

Eu sou aquela pessoa que tem um alerta do Google – sim, do Google – no meu email para receber tudo o que sai sobre desinformação. Ossos do ofício. Mas, nos últimos meses, tem chamado a atenção o aumento exponencial de notícias, artigos, colunas sobre como a Inteligência Artificial (IA) é uma enorme ameaça às nossas eleições. Esse parece ser o grande tema da vez, e como desconfio sempre dos grandes temas da vez, resolvi colocar a questão para duas das maiores pensadoras sobre a intersecção entre tecnologia e democracia (ou a falta dela): Letícia Cesarino, autora do livro O Mundo do Avesso (editora Ubu) e Nina Santos, diretora do Aláfia Lab e coordenadora geral da organização *desinformante. Tive o prazer de mediar um debate entre as duas pesquisadoras na semana passada, durante o evento que celebrou os 13 anos da Agência Pública no Tucarena, na PUC de São Paulo. E, como eu adivinhei, as duas me trouxeram perspectivas novas e refrescantes sobre o tamanho real dessa ameaça. Nina chamou atenção para o fato de que 2024 é um grande ano eleitoral no mundo todo. Não apenas por aquelas eleições que, mais uma vez, podem reverter o pouco espaço de respiro que tivemos nos últimos anos, caso Donald Trump for eleito presidente dos Estados Unidos. Segundo o Centro para o Progresso Americano, um instituto americano, mais de 2 bilhões de pessoas vão às urnas em eleições gerais ou municipais em 2024. Esse é o ano em que mais pessoas votarão na história. Mas não foi só isso: um avatar criado através da empresa MidJourney ajudou a transformar o atual ministro da Defesa, acusado de violações de direitos humanos, na imagem de um vovozinho simpático. Prabowo Subianto acabou vencendo as eleições e toma posse em outubro. 
Já Letícia Cesarino lembrou da fake news que talvez tenha tido o maior impacto durante as eleições primárias norte-americanas. Circulou pelos celulares uma mensagem de áudio gerada por IA com a voz do presidente democrata Joe Biden, tentando dissuadir eleitores de votarem nas primárias de New Hampshire. Esse uso soou um alarme, e agora a empresa MidJourney , que cria vídeos e fotos através de IA, suspendeu qualquer “prompt” que use Donald Trump ou Joe Biden durante o ano todo. (prompt é a pergunta que um usuário faz ao robozinho para ele gerar uma imagem, como por exemplo “quero uma foto de Joe Biden andando a cavalo”).
É preciso, sempre, olhar para o contexto, diz a antropóloga. Como a polarização parece estar cada vez mais enraizada na sociedade – ela cita o livro de Thomas Traumann e Felipe Nunes, Biografia do Abismo (ed. Harper Collins) – existe, agora, um franja menor de votos a serem disputados às vésperas do pleito.
Isso muda significativamente também os usos da desinformação, e uma ação pontual pode definir o resultado. “Ao invés de mudar a opinião você vai agir num plano mais meta digamos assim para dissuadir o eleitor do seu oponente de votar”, explica.
Mas proibir ou não proibir a IA, diz Letícia, pode não ser a questão. “Hoje em dia se diferencia o Deep Fake do Cheap Fake né?”, pergunta, referindo-se às montagens mais toscas e menos rebuscadas, em contraste com Deep Fakes, imagens tão bem feitas que parecem reais.
“Mas o Cheap Fake já fazia efeito lá por 2018… Lembremos os áudios de vozes imitando Jair Bolsonaro. Tem gente que simplesmente sabe imitar a voz e as pessoas da internet estão distraídas, e já estão num viés de confirmação”, diz. O problema maior, para ela, é que esses conteúdos navegam em um ecossistema de desinformação que já está consolidado, “onde muita gente já tem uma predisposição para acreditar, mesmo no Cheap Fake”.
“O problema é, portanto, que a IA não vai “ter necessariamente uma ruptura qualitativa no modo como desinformar”, mas vai apenas “anabolizar a desinformação”.
Mas, ao focarmos todo o debate nos usos da IA, ela lembra, podemos estar esquecendo do que mais importa: o ecossistema de desinformação, mediado pelo oligopólio das Big Techs, permanece intacto.
Estamos “queimando uma etapa”.
“É um problema que já existia desde muito antes e isso não foi ainda endereçado pelo meio político, quando o PL 2630 [PL das Fake News, que pretendia regulamentar as plataformas digitais] foi enterrado ano passado com todo esse esse lobby, não só da extrema direita, mas das próprias plataformas que não permitiram que o PL avançasse”, diz. “A impressão que eu tenho é que meio que se deixou isso de lado”. Resta, para nós que investigamos o ecossistema da informação, tentar adivinhar o que vai acontecer nessas eleições quando, mais uma vez, as redes sociais e serviços de mensageria serão campo fértil pra toda sorte de milícias digitais. Quanto a isso, tanto Nina quanto Letícia foram peremptórias: “Vamos ver o que vai acontecer, porque são tudo experimentos”.
Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública



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