Por Luiz Prado
No livro, o professor da USP Luis Sérgio Krausz seleciona dez escritores dos séculos 17 a 20 para compreender a emancipação dos judeus da Europa central – Ilustração: Autor desconhecido / Jewish Museum via Wikimedia Commons
Quando Shabtai Zvi (1626-1676) se apresentou ao mundo como o tão esperado Messias dos judeus, em 1648, deu início a uma revolução imprevista. Não porque seus planos tenham dado certo: capturado em Constantinopla, teve de se converter ao islamismo diante do sultão para salvar a própria vida, encerrando precocemente a heresia sabataísta. A grande contribuição de Shabtai Zvi foi disparar uma crise religiosa como nunca se tinha visto entre a comunidade judaica exilada na Europa, abrindo caminho para o questionamento da fé e da tradição. Ou seja, dando o empurrão para a entrada dos judeus europeus na modernidade.
Essa análise é o ponto de partida de Santuários Heterodoxos (Edusp, 2017), livro do professor de Literatura Hebraica e Judaica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Luis Sérgio Krausz. O autor seleciona obras de dez escritores de entre os séculos 17 e 20 para compreender a emancipação dos judeus da Europa Central, sua inserção na moderna e iluminista sociedade europeia e o surgimento de uma subjetividade desvencilhada da tradição rabínica.
Com a centralidade do referencial religioso abalada pela frustração sabataísta, uma subjetividade individual começa a emergir, alimentada pelo encontro do judaísmo rabínico da Alemanha e Holanda com as práticas e ideias dos marranos, judeus da Península Ibérica convertidos à força ao catolicismo e que mantinham clandestinamente sua religião e costumes. O advento do “judeu de corte germânico”, que prestava serviços aos nobres cristãos graças ao seu poder econômico e por isso tinha uma vida social fora do gueto, também estimula o pensamento liberto das prescrições rabínicas.
Esses primórdios do “judeu moderno”, como define Krausz, começam a aparecer na primeira obra analisada, Zichronos Meret Gilkl Hamil, a autobiografia de Glückl von Hameln. Escrita no século 17 para ser deixada como livro de memórias e ensinamentos para a família, foi publicada só em 1896 por descendentes da autora. Vivendo no período da heresia sabataísta, Glückl von Hameln captura ao mesmo tempo as preocupações da comunidade judaica do exílio europeu, habitante do gueto à espera do Messias, e a aurora de um pensamento individual.
Conforme analisa Krausz, o livro “coincide com um primeiro ímpeto da sociedade judaica em direção à integração na sociedade europeia, em direção à emancipação. Se nele o sentido de subjetividade parece encontrar-se sempre submetido às crenças religiosas, as experiências individuais narradas são capazes de levar a autora e seus leitores à perplexidade. Tais narrativas invariavelmente são acompanhadas de um subtexto que reitera, com temor, a fidelidade às leis religiosas e, ao mesmo tempo, a aceitação estoica do destino, mas também parecem esboçar dúvidas quanto à validade universal dessas crenças, o que torna a postura narrativa de Glückl von Hameln emblemática da situação dos judeus à época dos prenúncios da emancipação e da assimilação”.
As dúvidas quanto ao abandono da religiosidade e das tradições desaparecem na autobiografia do polonês Salomon Maimon (1752-1800), Lebensgeschichte. Aqui, o otimismo iluminista faz do gueto lugar para ser esquecido, exemplo de opressão e sufocamento. Segundo Krausz, Maimon funda uma corrente de autores que, “persuadidos pelas promessas do Iluminismo, fazem a apologia de uma travessia em direção ao novo continente da modernidade burguesa, e a ela atribuem poderes redentores que se aproximam dos projetados sobre o advento da redenção, durante os séculos de isolamento, no pensamento messiânico”.
Se a obra de Maimon enfatiza a liberdade social trazida pela fuga do gueto, as cartas de Rahel Levin Varnhagen (1771-1833) são um grito a favor dos sentimentos particulares, o que aproxima a autora do movimento romântico alemão Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto). Nesse sentido, a Gefühlskultur (cultura dos sentimentos), que se liberta da tradição religiosa cristã e passa a cumprir papéis que antes eram de instâncias superiores transcendentes e inalcançáveis, também trava as mesmas batalhas junto ao judeu moderno.
“Esse espírito romântico e seu neopaganismo em tudo se contrapõem aos preceitos legalistas do judaísmo rabínico, fundamentados nos pressupostos do temor, do afastamento e da distância. A emancipação judaica torna-se, nesse caso, sobretudo, a emancipação dos sentimentos e das emoções, que instaura uma consciência característica da modernidade”, afirma Krausz.O livro lançado pela Edusp – Foto: Reprodução
O livro mapeia, contudo, limites para essa emancipação social e subjetiva. A crise de identidade e de pertencimento, conforme Krausz analisa em O Castelo, de Franz Kafka (1883-1924), parece demonstrar que a tradição e o senso comunitário não podem ser facilmente substituídos. Tendo sempre no horizonte o espectro dos movimentos nacionalistas e racistas que culminaram no Holocausto nazista, o professor discute o alcance do Édito de Tolerância de José II da Áustria, considerado à época um avanço na emancipação e inclusão dos judeus.
“Propor aos judeus tornarem-se artesãos e proibir-lhes a aquisição do grau de mestre; tornarem-se agricultores e proibir-lhes a propriedade de terras, talvez seja só uma outra maneira de lhes enviar as mesmas mensagens ambíguas que chegam do castelo, por carta ou telefone, a um Sr. K cada vez mais perplexo e confuso.” E Krausz conclui, em outro trecho: “Perdido entre a esperança e a frustração, o destino de quem está condenado à eterna exclusão do castelo pode ser resumido pela frase com que a mulher do estalajadeiro se dirige ao Sr. K.: ‘O senhor não é do castelo. O senhor não é da aldeia. O senhor não é nada’”.
Santuários Heterodoxos – Subjetividade e Heresia na Literatura Judaica da Europa Central, de Luís Sérgio Krausz, Edusp, 264 páginas, R$ 32,00
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