quarta-feira, 5 de julho de 2017

Livro propõe jornalismo baseado nas ideias de Paulo Freire

Por Diego C. Smirne
Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano – Imagem: Wikimedia Commons


Aobra do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) é fonte de inspiração para acadêmicos de múltiplas áreas ao redor do mundo. O novo livro do professor Dennis de Oliveira, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, é mais um exemplo disso. Em Jornalismo e Emancipação: Uma prática jornalística baseada em Paulo Freire (Appris Editora), fruto de sua tese de livre-docência defendida em 2014, o professor aplica as ideias de educação libertadora do intelectual para conceber uma maneira de fazer jornalismo diferente desta dos dias atuais.A partir de uma análise histórica desde os primórdios do jornalismo até a contemporaneidade, Oliveira faz um diagnóstico de como a prática foi desvirtuada e incorporada pelo capital. “O jornalismo é uma atividade filha do modelo de sociedade liberal, portanto é produto do capitalismo. No momento em que esta perspectiva societária era revolucionária, o jornalismo também tinha este caráter transformador. À medida que a civilização capitalista entra em decadência, o jornalismo também se afasta totalmente das suas funções originárias”, explica.
O professor Dennis de Oliveira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
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Em sua explanação sobre a evolução do jornalismo ao longo do tempo, o professor recupera conceitos clássicos sobre poder e controle social de autores como Michel Foucault, Karl Marx, Zygmunt Bauman e Sigmund Freud. Mais à frente, coloca a mídia atual como um dos alicerces de um tripé de manutenção do poder, formado também pela indústria bélica e pelos agentes financeiros.
Hoje há uma forte aproximação do jornalismo com a espetacularização da realidade, o objetivo não é mais esclarecer, mas sim impactar… A inflação de informações proporcionada com as tecnologias das redes sociais deveria fazer o jornalismo se diferenciar como uma tipologia específica e singular de narrativa, mas, ao contrário, se submeteu à ditadura da narrativa minimalista, do opinionismo e da espetacularização.
Oliveira alerta para o risco de o jornalismo se igualar a fenômenos da era digital como a boataria generalizada, as fake news, a pós-verdade, caso não demonstre sua diferenciação dentro da inflação de informações hoje existente. “Muitos donos de empresas de comunicação avaliam que o jornalismo entrou em crise porque a internet é uma concorrência desleal. Não é bem assim. Este atual jornalismo está em crise porque boa parte da população não acredita mais nele, não necessita mais dele.”
“Recentemente, o DataFolha fez uma pesquisa sobre a confiança nas instituições e concluiu que a imprensa é a segunda instituição em confiança, depois das Forças Armadas. Porém, quando se faz o recorte para os jovens até 29 anos, a grande maioria não confia”, completa.
Diante dessas afirmações, Oliveira admite que seu livro por vezes parece por demais pessimista. Ele acredita, porém, que a crítica radical é dever de um intelectual, e que é através dela que novos caminhos podem surgir. “Este aparente pessimismo é uma base para um otimismo na crença de que é possível um outro mundo — e um outro jornalismo”.
A pesquisa do professor indica que negros e negras têm pouquíssimo espaço na mídia nacional, em geral sendo minorizados ou sexualizados – Imagem: Reprodução

“Tem que se pensar a recuperação do jornalismo não só como modelo de negócios, mas como uma instituição importante para a reconstrução da democracia, o que implica em pensar na inclusão da maioria da população na esfera pública. E maioria, quando se trata de um país como o Brasil, é juventude, mulheres, negras e negros, etc.”, defende o professor.
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Cobertura enviesada
Além de se debruçar sobre a história do jornalismo, o professor Dennis Oliveira analisa em seu livro casos práticos. Entre eles, um estudo sobre a cobertura dos jornais da América Latina sobre as Eleições de 2010 no Brasil. Constatou-se que a mídia hegemônica no País apoiou abertamente a candidatura de oposição de José Serra, ao passo que os jornais de países vizinhos apoiaram Dilma Rousseff, pois a política externa dos governos petistas interessava a parte de suas elites.
O livro analisa a cobertura dos veículos hegemônicos da mídia da América Latina sobre as eleições de 2010 – Foto: Reprodução
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“Os interesses econômicos do grande capital impõe as agendas nas coberturas politicas. Veja, há similaridades ideológicas muito fortes entre todos estes veículos do continente, mas se trata de interesses de grupos econômicos, daí a diferença de postura”, explica Oliveira. “Também verificamos o quanto o Brasil está apartado da América Latina, a ponto de um jornal mexicano chamar as eleições no Brasil de ‘eleições cariocas’.”
Outro estudo teve como foco o tratamento dado pelos veículos jornalísticos à população negra. “O que foi impressionante foi o fato de que os veículos brasileiros analisados destinam um percentual de apenas 8,57% para negros e negras (isto incluindo propaganda, matérias etc.) enquanto que publicações similares dos EUA destinam quase 9%. A diferença poderia ser insignificante se não fosse um dado: a população negra brasileira supera os 50% do total, enquanto que nos EUA não passa de 16%”, relata.
Oliveira ressalta ainda que mesmo nos poucos casos em que há negros e negras no conteúdo jornalísticos, eles são em geral minorizados, difamados esteticamente, segregados a situações que remetem ao lúdico ou ao lúgubre ou, no caso das mulheres, ao erotismo.
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Emancipação
Como contraponto aos exemplos de jornalismo enviesado e à perversidade do sistema de forças que apresenta, Oliveira busca duas amostras de como é possível praticar um jornalismo humanizado e emancipador.
A primeira é a reportagem “Lavoura Arcaica”, de Elvira Lobato, publicada no jornal Folha de S. Paulo em 18 de julho de 2004, sobre o trabalho escravo no Brasil, e a outra é intitulada “Beleza sãorremana vai além dos padrões”, da então estudante de Jornalismo da ECA Amanda Manara, no jornal laboratório Notícias do Jardim São Remo, de novembro de 2013.
As duas reportagens têm a preocupação de tecer vozes diversas, ampliar fontes e perspectivas de abordagem e, assim, pontuar todos os aspectos que determinam aquela situação. São sistematizações de experiências, conforme a proposta metodológica de Oscar Jara..
Dennis de Oliveira se lembra de sua experiência na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, no final dos anos 1980 e início de 1990, quando teve a chance de trabalhar com Paulo Freire, e diz que foi, então, “contaminado” por suas ideias. Isso, somado a sua origem em uma família de trabalhadores negros e seu trabalho como jornalista em movimentos sociais, deu ao professor uma visão abrangente do papel que deve ser exercido pelo jornalismo na sociedade.
“Incomodava-me muito esta ideia comum no jornalismo de pensar o ‘público’ como ente abstrato, desprezando sua diversidade e mesmo suas singularidades. Na mídia hegemônica, com a concentração dos meios, esta percepção se transforma em uma tremenda arrogância, como se os jornais e jornalistas fossem os demiurgos e legítimos ‘representantes’ da vontade da ‘sociedade civil’. Na mídia alternativa, existe também um problema sério que é construir uma narrativa de falar para o universo de militantes. A realidade é mais complexa e diversa do que estes produtores de discursos acham que o ‘público’ é”, afirma.
O professor aponta a Guerra Fria como um dos fenômenos-chave para a formação do tripé de poder dinheiro-armas-mídia – Imagem: Reprodução
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Para o professor, a importância das ideias de Paulo Freire para a construção de um jornalismo mais humanizado começa na formação de uma consciência mais ampla do que é o “público” e a responsabilidade que a atividade jornalística tem com ele. “Considero Paulo Freire, mais que um educador, um pensador que consegue construir uma episteme e um método que não é só uma perspectiva crítica, mas se constrói dentro da complexidade desta realidade e da diversidade da sociedade.”
Jornalismo e Emancipação: Uma prática jornalística baseada em Paulo Freire, de Dennis de Oliveira, Appris Editora, 216 páginas, R$ 51,00.
Imagem: Divulgação

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