Fonte: Agência Pública - Grandes empresas de auditoria ambiental têm ignorado infrações e danos causados por madeireiras e outras empresas e mantido certificações de sustentabilidade. De acordo com investigação inédita realizada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e 39 veículos jornalísticos parceiros — dentre eles a Agência Pública —, auditores e empresas certificadoras têm dado aval para produtos ligados ao desmatamento de florestas nativas, transporte irregular de madeira ou que foram extraídos de áreas de conflito. A investigação Deforestation Inc. descobriu que empresas têm utilizado os resultados de auditorias para fazer propaganda dizendo que seus produtos e operações respeitam os padrões ambientais, as leis trabalhistas e os direitos humanos, sem revelar as infrações para consumidores ou acionistas. O mercado envolve a produção de iates, móveis de luxo e outros produtos em todo o planeta.A apuração revelou que muitas empresas declaravam como manejo sustentável de florestas operações que passavam longe de serem sustentáveis. Por exemplo, uma empresa de produtos de madeira que opera na Amazônia afirmava ter sido “certificada com grande sucesso” apesar de ter recebido 36 multas desde 1998 por armazenar e transportar madeira sem documentação legal, dentre outras violações. Uma empresa de silvicultura japonesa que atua no Chile recebia madeira de fornecedores cuja documentação incluía informações falsas sobre a origem da madeira. Um grupo de madeireiras canadenses usava um “plano de manejo florestal sustentável” certificado por um auditor local para cortar árvores em florestas de áreas nativas, alterando drasticamente o território da comunidade e seu modo de vida, de acordo com uma sentença judicial.Grupo de madeireiras canadenses usava “plano de manejo florestal sustentável” certificado para cortar árvores em florestas de áreas nativas. O ICIJ examinou registros de inspeções, dados sobre violações ambientais e processos judiciais referentes a empresas de pelo menos 50 países. A análise identificou 48 empresas de auditoria que declararam como sustentáveis práticas de empresas que haviam sido acusadas de violações como desmatamento em áreas nativas e reservas protegidas, uso de licenças falsas e importação de madeira cortada ilegalmente. Desde 1998, mais de 340 empresas de produtos florestais certificadas foram acusadas de crimes ambientais ou de outras infrações pelas comunidades locais, por grupos ambientalistas e por órgãos governamentais, dentre outros. No Brasil, a investigação da qual a Agência Pública participou encontrou ao menos 60 empresas que foram multadas pelo Ibama em mais de R$ 100 milhões, mas que tiveram ou ainda mantêm as certificações. Esses casos provavelmente são subestimados, em parte, porque muitas bases de dados governamentais sobre crimes ambientais não identificam as empresas responsáveis. “O sistema como um todo de que nós dependemos não funciona”, afirmou Grégoire Jacob, consultor com atuação na área de produtos florestais, à Radio France, parceira do ICIJ. “Somos levados a acreditar que vamos ter produtos mais virtuosos; às vezes isso é falso.” Jacob foi um dos seis auditores florestais e consultores que disse ao ICIJ e a seus veículos parceiros que os padrões de certificação eram inadequados e que os procedimentos são ineficazes. Os próprios auditores — que fazem parte de uma indústria de US$ 10 bilhões, e que continua crescendo — raramente são responsabilizados por minimizar ou deixar de ver indícios importantes de irregularidades nas operações de seus clientes e em relatórios de sustentabilidade. Segundo o advogado da ClientEarth, com experiência em responsabilidade corporativa e riscos climáticos, Jonathan White, a auditoria ambiental é em grande medida desregulamentada. Em ambiente sem regulamentação, você tem problemas em estabelecer responsabilidades. Para que esse tipo de órgão de controle possa desempenhar um papel razoavelmente robusto, eles precisam ter um certo ceticismo e checar as afirmações feitas pelas empresas”. A investigação global também joga luz sobre os fracos esforços governamentais para impedir o comércio de madeira oriunda de zonas de conflito e de países com regimes autoritários. Segundo a apuração, empresas de certificação ambiental permitem que empresas que estão no centro desse comércio enganem o público e exploram recursos naturais preciosos usando a bandeira da “sustentabilidade”. Ao mesmo tempo, áreas de floresta que, somadas, são maiores do que a União Europeia, desapareceram desde 1990. E uma quantidade cada vez maior de florestas segue sumindo para oferecer produtos com selos de validade duvidosa.
“Sustentabilidade” para o mercado ver. Ao longo das últimas duas décadas, multinacionais de capital aberto, pequenos fornecedores e empresas de investimentos lançaram mão de sua associação com esquemas de certificação florestal voluntária para mostrar a consumidores e acionistas que estavam comprometidas com diretrizes ecológicas, sociais e de governança (ESG) e que suas práticas não prejudicam o meio ambiente. As chamadas certificações de sustentabilidade oferecidas por empresas privadas não são uma exigência legal, mas se tornaram praticamente uma necessidade para empresas que vendem, produzem ou usam madeira e outras matérias-primas associadas ao desmatamento. No coração desse sistema autorregulatório estão organizações internacionais como o Forest Stewardship Council (FSC), o Programme for the Endorsement of Forest Certification (PEFC) e o Roundtable on Sustainable Palm Oil (RSPO). Essas instituições se utilizam de informações de empresas de auditoria para avaliar clientes e certificar que madeireiras, empresas que produzem óleo de palma ou vendem outros produtos obtêm seus insumos de maneira responsável e não utilizam materiais ligados ao desmatamento ilegal e a outros crimes ambientais. Por exemplo, em 1997, a editora que publicava J.K. Rowling nos Estados Unidos, aceitou a exigência dela de usar papel certificado pela FSC para imprimir o último livro da série Harry Potter, “Harry Potter e as Relíquias da Morte”. O setor de auditoria ambiental é parte de uma indústria ainda maior de inspeção e certificação que movimenta cerca de US$ 200 bilhões por ano. Estão aí gigantes de auditoria como a KPMG e a PwC, grandes empresas de capital aberto como a multinacional suíça SGS Société Générale de Surveillance SA, e empresas menores como a PT Inti Multima Sertifikasi na Indonésia. Em geral, os auditores fazem avaliações de risco para seus clientes, inspecionam fábricas, entrevistam funcionários da empresa e se certificam de que as operações e os produtos respeitem os padrões ambientais voluntários instituídos por organizações privadas de certificação. O marketing de algumas empresas de auditoria alardeia metas como “proteger as florestas do planeta”, facilitar a “exploração economicamente viável de florestas” e “mitigar o desmatamento”. A conversão da floresta para outros usos — como agricultura ou a construção de estradas — e o desmatamento industrial em florestas primárias estão entre as principais causas da mudança climática. Cientistas estimam que essas práticas sejam responsáveis por mais de 10% das emissões de gases de efeito estufa, que contribuem para o aquecimento global. A destruição das florestas também agrava inundações e a perda de habitats para a vida selvagem, e contribui para um aumento de doenças infecciosas em humanos, de acordo com cientistas. Com menos árvores disponíveis, alguns insetos hospedeiros de patógenos migram para plantas que são consumidas por animais de fazendas que acabam na cadeia alimentar. Em 2021, o presidente dos EUA, Joe Biden, e mais de 100 outros líderes mundiais reunidos na COP26 da ONU em Glasgow se comprometeram a acabar com o desmatamento até 2030. Desde então, governos prometeram aprovar regulações mais rígidas, e as empresas de auditoria ambiental viram o movimento como uma oportunidade de negócios para promover seus serviços, ajudando clientes a combater as perdas florestais mundo afora. Especialistas consideram que em países onde o desmatamento é generalizado e a ação governamental na área ambiental é fraca, como o Brasil, a certificação voluntária é uma alternativa melhor do que leis de manejo florestal e cadeias de fornecimento que não são aplicadas. Mas no Brasil, onde se estima que 90% do corte de madeira seja ilegal, apenas uma pequena porcentagem das empresas está disposta a mostrar seus livros contábeis e a pagar por certificações caras, de acordo com Marcos Planello, um auditor florestal que opera em São Paulo. “Não é brincadeira. Essa gente anda armada”, disse Planello, sobre a atuação dos madeireiros. “Nós [auditores] só vamos a uma área quando uma empresa quer uma certificação voluntária. Certificações continuam sendo uma maneira válida de ‘reduzir riscos’, mas se uma empresa quiser fazer alguma coisa errada, vai fazer”, argumenta.O setor de inspeção e certificação, que inclui as certificações ambientais, movimenta cerca de US$ 200 bilhões por ano.
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