sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

A fúria dos homens

Marina Amaral
Diretora executiva da Agência Pública
A chuva torrencial que despencou no litoral norte de São Paulo diz mais sobre a fúria dos homens do que sobre a força da natureza. Não apenas por ser resultado da potencialização de um fenômeno natural pelo aquecimento global, como explicaram os cientistas, por sua vez provocado pela atividade humana, mas pela história e condições das vítimas no local mais afetado pelo temporal: a Vila do Sahy. Trata-se de uma ocupação que começou em 1987, jamais foi regularizada pela Prefeitura de São Sebastião, não tem saneamento básico nem energia elétrica em diversos pontos, e serve de moradia para cerca de 800 famílias, que vivem do trabalho em condomínios, pousadas, restaurantes e hotéis de luxo frequentados pela elite paulista na fatia de praia mais valorizada do litoral paulista - com destaque para Barra do Sahy, Baleia, Cambury e Maresias. Não há como encontrar sequer um imóvel acessível à classe média nessa região, que dirá habitações populares de qualidade. A ocupação das encostas começou com os trabalhadores atraídos durante o longo processo de asfaltamento da rodovia Rio Santos - que se iniciou em 1971 e só foi concluído em 1985 nesse trecho - e ganhou mais moradores com a chegada gradativa de famílias de origem caiçara expulsas de suas vilas e casas pela especulação imobiliária gigantesca que acometeu a região a partir de então. Na década de 1980, vilas de pescadores como Boiçucanga foram invadidas por bares, pousadas e casas de veraneio na orla e nas margens dos rios, expulsando seus moradores, enquanto a área de preservação ambiental da Serra do Mar nos sertões foi ocupada por condomínios que em alguns casos, como Cambury, se instalaram até as areias da praia. Muita gente “de bem” tem casas em condomínios em áreas de mata atlântica griladas, onde são servidas por moradores das encostas como os que vivem na Vila do Sahy. Entre esses veranistas, estão os que agrediram na terça-feira passada os repórteres do Estadão que cobriam a tragédia em um condomínio de luxo em Maresias. Enquanto os chamavam de “esquerdistas e comunistas”, empurraram a repórter Renata Cafardo em uma poça d’água enquanto pressionavam o fotógrafo Tiago Queiroz a apagar as fotos do condomínio alagado e, ao contrário da Vila Sahy, sem vítimas. Não sabemos o que provocou a fúria da turba bolsonarista desta vez, se o habitual ódio à imprensa, o medo da desvalorização dos imóveis milionários pelas imagens da inundação ou a denúncia da desigualdade fatalmente retratada durante a catástrofe. O que sabemos é que, para além da ação dos poderes públicos, se houvesse uma preocupação dos donos de hotéis e pousadas, assim como dos ricos moradores de condomínios, para com a situação de vulnerabilidade em que vivem as famílias que mantêm a estrutura de turismo e lazer da qual usufruem, aquelas comunidades não estariam lidando com 48 mortos, 38 desaparecidos, 2.500 desabrigados. Sim, é um alento ter o presidente da República e o governador do Estado presentes na área da tragédia e fazendo promessas, como a de instalação de habitações populares do programa Minha Casa, Minha Vida em terrenos cedidos pela Prefeitura de São Sebastião. Antes tarde do que nunca. Mas os fenômenos climáticos extremos só vão se agravar e nossa sociedade parece doente demais para lidar de forma solidária com os desafios que enfrentamos. Em fevereiro do ano passado, um relatório do IPCC colocou o Brasil entre os “hotspots de alta vulnerabilidade humana”, exatamente por causa de suas extensas áreas de pobreza, com desafios de governança e acesso limitado a serviços e recursos básicos, conflitos violentos e modos de vida sensíveis ao clima. A vulnerabilidade se agrava, de acordo com o relatório, sob influência das desigualdades de gênero, raça e renda. Como explicou a pesquisadora brasileira Thelma Krug, vice-presidente do IPCC, em entrevista à Pública: “O risco climático não é somente uma questão das condições climáticas que estão mudando. Quando se junta a mudança do clima a questões socioecológicas, aí você tem um nível generalizado de consequências.” É bom todo mundo começar a olhar pra cima; pras encostas dos morros, pras beiras de córregos - lugares onde se refugiam aqueles que têm seus direitos humanos negados enquanto servem aqueles que, mais do que direitos, têm privilégios. Nossa solidariedade aos colegas Renata e Thiago, indignamente atacados enquanto trabalhavam, esperando que os responsáveis sejam punidos como promete o ministro Flávio Dino. 
Um bom fim de semana.








Marina Amaral
Diretora executiva da Agência Pública



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